Páginas

domingo, 30 de maio de 2010

Das Rosas (silêncio)

"A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá."
extraído do poema Partilhar de José Carlos Ary dos Santos (aqui)

Gosto tanto destes versos. Ao contrário de muitos outros, não os consigo separar. Sempre que tento reduzir a imagens menores, há algo que falta, há nos que selecciono uma mensagem clara alertando para a mutilação. E, às vezes, a mensagem é gentil - quando faltam as rosas rubras, mas muitas outras a mensagem é uma ventosa interpelação - porque faltam as rosas chá.
As rosas rubras são mais ariscas a pedir o que lhes falta... será que, até elas, sabem que lhes falta a ternura?...

E isto sempre me lembra da necessidade do equilíbrio - não se concebe (embora se deseje) um mundo rosa chá, porque o sal da vida está, claro, nas rosas rubras.

O problema é que, não conseguindo separar estes versos, estes, em conjunto, são um mundo que me permitem apenas uma interpretação limitada - ainda mais limitada do que as outras, quero dizer!.

Acho particularmente desafiante a imagem do sarcasmo enquanto rosa rubra. Como ligamos esta última ao Amor (a rosa vermelha, a rosa escarlate, a rosa encarnada, a rosa rubra, mas sempre a rosa-sangue-pulsante...), contagiamos o sarcasmo (arma tão subtil quanto cruel...) com toda a fertilidade, não do amor, mas pelo menos da paixão.

E talvez não sejam as palavras amenas que nos incendeiam - talvez sejam estas, as cruéis, que desencadeiam em nós revoluções, erupções, incontroláveis e desmedidas emoções. As verdadeiras, as que não intelectualizamos. E, digo, serão essas as rosas rubras que permitem a nossa evolução - interior, em relação ao outro, em relação ao mundo, ou mesmo do próprio mundo.

E a palavra rosa chá? Será "só" o silêncio? E pode o silêncio ser "só"?
Esta é uma imagem magnífica! Apresenta-nos o conforto (chá), a cumplicidade (silêncio), a ternura (não a alvura do branco, mas a placidez da cor de rosa chá), a partilha (da rosa, o aroma).

A palavra leva o nosso mundo ao outro - seja esse outro quem for.
E o nosso silêncio leva o nosso mundo ao "nosso" outro. O nosso silêncio é o espaço de ternura, de amor em que eu e tu vivemos. Só nós. Só nós - eu e tu - que partilhamos este silêncio, trocando esta rosa chá.

Magnífico!

Para ti. Que conheces o meu silêncio que, de ti, cobra sempre, sempre muitas palavras.
Por mais silêncio que receba...

sábado, 29 de maio de 2010

Da Sementeira (futuro)

"há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar"
excerto do poema You Are Welcome to Elsinore de Mário Cesariny (também aqui)
Novamente o Poeta da Liberdade - da liberdade de ser, quero dizer. De ser o real, o irreal e o que entremeia e fica ainda além dos dois. Pois... surreal.

Gosto muito deste poema (soa banal - se fosse em inglês diria "I love this poem" - estaria perfeito: nem banal nem exagerado como soa em português "amo este poema"); da forma como todos os seus versos per si são já poemas; da forma como podemos conjugar os seus versos continuando estes a ser poemas; da forma como podemos extrair um pedacinho e este continuar a sê-lo per si, mesmo que não indiquemos onde o mesmo se encaixa.

Destes dois versos em particular - construídos, é bom que se note, apenas com palavras de todos os dias, do supermercado, das compras do mês, da escola das crianças e até da nossa conversa afectada de certos dias... - se retira o círculo em que levamos a nossa vida. Círculo porque segue seguindo, sem sabermos onde foi o início e sem antevermos o final. Uma confortadora ilusão de perpetuidade.
No primeiro verso, o futuro: cheio de promessas (porque nos esperam), cheio de prodígios (porque imensas), porque nos trazem aquilo que já hoje queríamos e por isso tão ardentemente esperadas; no segundo... não, não é de perda que se fala!
(Lembram-se que aqui tratamos as palavras que criam mundos?...)
O segundo verso é um amoroso alerta: que o futuro - a esperança - não nos deve tolher o presente, semente desse futuro. Porque as palavras imensas que esperam por nós brotam das frágeis que hoje vamos proferindo - não nos podemos esquecer de as dizer, para que elas não se percam, não desistam de nós.

Por causa desta re-leitura (embora as saiba de cor, gosto de ver o seu contraste na folha de papel; é como se ao vê-las no papel eu veja ainda, sempre novas, imagens e correlações que não sugem da mera rememorização das mesmas), fiz o que devia ter feito há muito tempo: enviei uma sms a alguém que amo dizendo-lhe isso mesmo (em português, porque é mesmo amo-te que quero dizer e não o esquivo I love you). Espero ter sido uma palavra do presente a frutificar num imenso futuro.
Havemos de saber.

Da Alegria (bálsamo)

"Prazer de renegar e de destruir o tédio,
Esse estranho cilício,
E de entregar-me à vida como um vício."
Excerto de Alegria, poema de D'Aquém e D'Além Alma de Fernanda de Castro (aqui)

Gosto tanto da fortuna que esta Poetisa nos legou!
Não preciso de dizer aqui da sua obra, da revolução das suas palavras, da inovação da sua mensagem, da sua singular vida... Acho que, muito faltando para dizer (nunca se dirá tudo...), outros estão, de facto, mais habilitados para o fazer.

Mas preciso de dizer aqui o muito que a mim, particularmente, legou.
A começar pela compreensão desta Alegria, inerente à vida, a que cada vez presto mais atenção - à vida enquanto génese, à alegria enquanto paradigma de vida.

Sendo, por si, uma palavra radiosa, quase contagiante (uma palavra amarelo-girassol ou azul-turquesa) só consegui dar-lhe o poder que tem sobre a vida quando, há uns anos já, li este poema, do qual excertei os dois versos acima (tão reveladores como quaisquer outros do poema - escolhidos apenas pelo seu poder de síntese).

A descoberta foi motivada por um dito da Poetisa: "eu estou sempre comigo, nunca estou sou" (não é citação literal). Longas semanas matutei nisto. É uma observação estranha, não é?

Até então, sempre que me encontrava sozinha com os meus pensamentos (com a minha própria companhia) encontrava-me em profunda, desoladora e penosa solidão. Mas eu estava errada. Nesses momentos era - é - quando estou comigo de forma mais plena, mais consciente de mim e a emoção mais inquietante que surge não é a solidão: é a saudade. A ânsia de, além de me ter, ter mais alguém comigo.

Parece a mesma coisa? Não é! Definitivamente, não é.
Não significa também que eu me baste, nem significa que a minha companhia é mais (ou menos...) que a dos outros - significa que me dou momentos de maior intimidade comigo e, nesse sentido, me conheço e vou reduzindo a capacidade de me dispersar, de me desagradar, de ser aquilo que não quero ser.

Esta Alegria surge na sequência - aceitar-me, ser para mim a minha primeira prioridade (só sendo eu, posso ser para os outros em plenitude), saber-me sempre em companhia é já motivo de alegria.

Saber-se que se vive - e a vida é a única realidade positiva que, de facto conhecemos (por contraponto com a morte) - e saber que, a cada experiência vivida, se compõe importantíssimo património para vida futura ainda mais vida é, certamente, grande Alegria.

Encarar-se o agora - por mais vulgar, rotineiro ou sofrido que seja - como a espera das surpresas do amanhã é... um bálsamo. Uma Alegria.

Onde quer que viva hoje, certamente em Alegria, aqui lhe deixo um agradecimento sincero e comovido por esta dádiva!

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Do Ser (muito mais)

"O que és não vem à flor
Das caras e dos dias"
excerto do poema "Faz-me o favor.." de Mário Cesariny
E, depois deste interregno (diria quase de luto*), volta-se à alegria das palavras prenhas de sentido, de sentimento... Que quase explodem de vida e mendigam atenção.

Sem pejo - permita-me este Poeta da Liberdade - retiro do fantástico poema apenas estes dois versos. Eles  são já uma ode ao conhecimento profundíssimo que um tem do outro (pode ser amor, pode ser amizade, não interessa - até porque são sentimentos que não se desunem), mas é tão ampla, tão portentosa e tão reveladora que só grandes imagens (como estas) retratam - e, ainda assim, ficam aquém!

Mas também podem ser uma evidência da diferença entre o que se é e o que se mostra. E isto não é ter "duas caras" (lembrem-se que o objectivo é buscar palavras que criam mundos!).
É não ter dias para ser aquilo que se é - tão mais do que o que permitem as traiçoeiras rotinas em que se entretêm os dias.

Imagino estas palavras ditas por alguém ao seu par - de mansinho, constatando que o outro é tão mais que aquilo que os outros (que importam?) se apercebem... E, na imensidão dessa descoberta (que se refaz, sempre em redrobrados desvelos) ambos se espraiam por entre as flores, penetrando nas caras, nos dias sabendo aquilo que os outros não sabem.

Uma imagem comovente da cumplicidade da partilha de um segredo - que é o mundo do afecto que une as pessoas.

Tão bom...!


* E, contudo, parece-me impossível fazermos o luto de uma pessoa viva. De Alguém a quem não conseguimos resgatar o pedaço de coração que nos continua a ocupar.
Porque, se os inúmeros momentos de alegria, companheirismo, cumplicidade podem ser lembrados com carinho, com o sorriso fértil da palavra Amigo, já o futuro (e o presente, vá...) sem este Amigo que permanece no coração, no afecto, parece (o futuro) que nos afronta com a evidência da inutilidade do espaço que foi a nossa amizade.
Nunca consegui entender isto. Recuso-me a entender. Recuso-me a aceitar que o espaço do afecto fraterno se torne estéril.
E, deste tema, ficamos conversados!

domingo, 16 de maio de 2010

Do Sofrimento (adeus)

"Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!"
excerto do poema "Faz-me o favor..." de Mário Cesariny (aqui)

Ainda este abominável sentimento de perda... Da falta. Do adeus, que o não deveria ser, que o não precisava ser.
Tão profundo, tão sentido... Quase palpável.

Melhor, como diz este (dos meus) Poeta, o melhor será não dizer nada.

Amanhã, provavelmente, enquadrarei alguma palavra deste maravilhoso poema num maravilhoso sentimento. Na maravilha que é o mundo deste Poeta (criando os mundos de tantos...). Daqueles sentimentos que normalmente povoam o meu espírito.
Hoje (e já são 17!) ainda não é possível.



sábado, 15 de maio de 2010

Do Sofrimento (adeus)

"Amanhã fico triste… amanhã!
Hoje não… Hoje fico alegre!
E todos os dias, por mais
Amargos que sejam, eu digo:
Amanhã fico triste, hoje não…"
Poema encontrado na parede de um dos dormitórios de crianças do campo de extermínio nazista de Auschwitz

Sem comentários.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Da Memória (eternidade)

"Sangrentas são as palavras e deixam rastos através dos tempos"

Herberto Hélder (aqui)

Li estas palavras há pouco.
Ainda não me refiz do soco no estômago.

Repito cada palavra: "são" (forma do verbo ser no presente do indicativo - nada de especial...); "as" (artigo definido no meu tempo de escola, hoje determinante; nada de mais...); "palavras" (outra cuja classificação morfológica se alterou de substantivo comum para nome comum; e não deixa de ser uma palavrinha comum, inóqua!); poderia continuar: não vale a pena. Uma sucessão de palavras quotidanas.

Ah! Notaram que me esqueci do "sangrentas"...
Ora ainda bem. Também penso que aqui reside a chave para se apreender - imediata, instintivamente - a força abrupta desta frase. 

Que palavras são estas - as sangrentas? As que proferimos com raiva, com ódio? As que materializam injustiças? Ou as que prendemos na garganta e que fariam toda a diferença contra a violência que povoa a vida dos outros? As presentes ou as omissas?

Mas... Será que "sangrenta" é uma palavra de guerra, de ódio? Dizemos que sim e lembramos: Noite Sangrenta (revolta de 21-10-1921 em Lisboa), Terra Sangrenta (filme sobre o conflito no Cambodja na década de 1970), entre muitas outras expressões que ensombram as nossas memórias e a nossa história. Justamente. Porque estas situações reflectem o que há de pior no Homem.

Mas não haverá - mesmo - uma forma de redimirmos esta palavra? Voltemos à frase de Herberto Hélder: parece que tais palavras deixam rastos pelo tempo. Talvez esteja aqui a pista: o rasto que se deixa através dos tempos permite a imortalidade dessas palavras. Imortalidade é bom, não é? Pois...

Então, as palavras sangrentas (sendo que sangue é o que nos corre nas veias, quantas vezes acelerado por tantos sentimentos e ânsias - na esmagadora maioria, quero crer,  benignos) contêm em si próprias uma corrente (sanguínea) que transporta de geração em geração aquilo que imortalizamos. Só morremos quando somos esquecidos.

As palavras marcam-nos: as que dizemos e as que omitimos; as que ouvimos e as que se calam. Mudam vidas. Constroem ou destroem vidas. O seu rasto é inevitável. Têm sangue - não necessariamente porque ferem - mas porque é esse sangue, esse pulsar que as mantem vivas e úteis.

Parece-me que já estou melhor... do soco, digo!

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Do Espaço (fértil)

"em cada esquina um Amigo"

in "Grândola, Vila Morena", de Zeca Afonso (aqui)


Num início de dia atribulado (duvido que haja palavra apropriada a acordar o sono que corre solto...), entre o corre-corre de tarefa em tarefa (pelo meio deixando as perfeitamente dispensáveis, ainda assim repetidas nos dias do vagar), o perder o comboio e apanhar o táxi... lá surgiu a palavra do dia.
"Corra até àquela esquina, há táxis logo ali!" Ainda há gente simpática, pensei.Quase no meu destino - a horas, que alívio! - rememorizei a ajuda. Esquina... Esquina...
Lentamente a esquina era música e palavras de uma canção.

"Em cada esquina um Amigo" - fora mesmo isso que acontecera. Na esquina de um dia, surge o Amigo que dá o conselho útil, oportuno. 
Na esquina faz-se Amigo - só por estar lá, atento (como os Amigos, diria). Nem sempre o vemos, porque dobrou a esquina.

Lembro-me de outras esquinas: aquelas que ultrapassamos em silêncio, quase em segredo, e nos permitem desbravar novos mundos, novos afectos, crescendo nós também. As esquinas da nossa mente, as esquinas que escondem as nossas alegrias e as nossas tristezas, como se fossem realidades bipolares.
Quantas vezes verdadeiras vias férteis! Quantas vezes vias dolorosas!

O caminho esquinado em torno desta palavra traz-me a lembrança de que ontem, mesmo ontem, perdi um Amigo. Perdi-o, apenas, numa esquina da vida. Eu segui em frente, ele dobrou a esquina.
Não quero pensar que não o encontrarei em mais nenhuma esquina (embora saiba que é isso mesmo que vai acontecer - provavelmente o melhor, até!), porque sei que há-de aparecer a esquina onde me apetecia encontrá-lo, disponível para o segredo, para o silêncio, ou até para dizer "Há táxis logo ali!"

Eu prefiro ficar por aqui - em todas as esquinas, mesmo as afiadas, para indicar o táxi, assim encontre (e procure!) os meus Amigos: os que também lá estão (duas mãos cheias), os que seguiram em frente (oxalá sejam ainda mais felizes), os que ainda aí não chegaram (e que ansiosamente espero).

Porque qualquer rua sombria, gelada e deserta pode, ao dobrar da esquina, dar lugar a um Sol aberto, onde a alegria aquece o coração!

P.S.: Cheguei mesmo a tempo.  Ao virar da esquina (sempre este espaço tão surpreendente...) recebeu-me o sorriso acolhedor da Pessoa que eu ia encontrar. E lá voltou o Sol!

Da Criação (sacralizante)

"O mais profundo de uma palavra é o que há nela de sagrado. Deus tê-la-á dessacralizado quando ela criou o mundo. Mas nós sacralizamo-la de novo, quando o recriamos com ela."
in "Pensar", de Vergílio Ferreira (aqui)

Existe Mundo porque existe comunicação. Seja ela qual for.
Existe comunicação porque a tal obriga a singularidade da pluralidade e interdependência dos sujeitos.

Esta citação, extraída de "Pensar" de Vergílio Ferreira, onde tanta possibilidade pulsa, mede-nos o universo da palavra, num círculo significado-criação-significante-sagrado que une a dimensão terrena à dimensão divina que habita todos os que a proferem, que a ouvem, que a escrevem, que a entendem.

As palavras são sagradas.
Nelas mora um inestimável e inesgotável potencial de criação, de transformação, de afirmação, de afecto - um verdadeiro meio para criar mundos à sua imagem e semelhança.

Quais são as nossas palavras intimas? E as quotidianas?
Estranhamente, a sua intersecção devolve-nos um conjunto muito pouco povoado.

Este espaço de partilha e reflexão pretende estabelecer a ponte entre essas duas realidades da mesma palavra - o seu significado e o seu significante; a palavra no mundo e o mundo criado pela palavra.

Sugestões? Opiniões? Críticas? Claro! Bem-vindas!