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quinta-feira, 13 de maio de 2010

Da Memória (eternidade)

"Sangrentas são as palavras e deixam rastos através dos tempos"

Herberto Hélder (aqui)

Li estas palavras há pouco.
Ainda não me refiz do soco no estômago.

Repito cada palavra: "são" (forma do verbo ser no presente do indicativo - nada de especial...); "as" (artigo definido no meu tempo de escola, hoje determinante; nada de mais...); "palavras" (outra cuja classificação morfológica se alterou de substantivo comum para nome comum; e não deixa de ser uma palavrinha comum, inóqua!); poderia continuar: não vale a pena. Uma sucessão de palavras quotidanas.

Ah! Notaram que me esqueci do "sangrentas"...
Ora ainda bem. Também penso que aqui reside a chave para se apreender - imediata, instintivamente - a força abrupta desta frase. 

Que palavras são estas - as sangrentas? As que proferimos com raiva, com ódio? As que materializam injustiças? Ou as que prendemos na garganta e que fariam toda a diferença contra a violência que povoa a vida dos outros? As presentes ou as omissas?

Mas... Será que "sangrenta" é uma palavra de guerra, de ódio? Dizemos que sim e lembramos: Noite Sangrenta (revolta de 21-10-1921 em Lisboa), Terra Sangrenta (filme sobre o conflito no Cambodja na década de 1970), entre muitas outras expressões que ensombram as nossas memórias e a nossa história. Justamente. Porque estas situações reflectem o que há de pior no Homem.

Mas não haverá - mesmo - uma forma de redimirmos esta palavra? Voltemos à frase de Herberto Hélder: parece que tais palavras deixam rastos pelo tempo. Talvez esteja aqui a pista: o rasto que se deixa através dos tempos permite a imortalidade dessas palavras. Imortalidade é bom, não é? Pois...

Então, as palavras sangrentas (sendo que sangue é o que nos corre nas veias, quantas vezes acelerado por tantos sentimentos e ânsias - na esmagadora maioria, quero crer,  benignos) contêm em si próprias uma corrente (sanguínea) que transporta de geração em geração aquilo que imortalizamos. Só morremos quando somos esquecidos.

As palavras marcam-nos: as que dizemos e as que omitimos; as que ouvimos e as que se calam. Mudam vidas. Constroem ou destroem vidas. O seu rasto é inevitável. Têm sangue - não necessariamente porque ferem - mas porque é esse sangue, esse pulsar que as mantem vivas e úteis.

Parece-me que já estou melhor... do soco, digo!

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